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Entrevista a Vasco Lourenço.

Capitão Vasco Lourenço, Comandante da Região Militar de Lisboa e do Conselho da Revolução após o 25 de Abril. Atualmente, passou à Reserva com o posto de Tenente-Coronel.

No seu percurso de vida e profissional foi ex combatente da Guerra Colonial; membro ativo do Movimento dos Capitães de Abril; pertenceu à Comissão política do MFA; mais tarde membro do Conselho dos Vinte; membro do Conselho da Revolução e, nos dias de hoje, é Presidente da Associação 25 de Abril.

Foi ainda agraciado com louvores pelos seus esforços na luta para um Portugal Democrático, pela defesa dos valores civilização, do Homem e da Liberdade, como podemos comprovar pela distinção da Grã-Cruz da Ordem da Liberdade e pela Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique.

 

 Hoje em dia, a censura, a guerra, a polícia política, e o partido único são situações que já não são atuais. Mas a luta para Portugal para se tornar num País democrático não foi algo fácil. Tendo em conta o contexto da nossa nação e o internacional, a bipolarização de dois mundos com as suas superpotências, entre o comunismo e capitalismo da União Soviética e dos Estados Unidos, afetou os países que se viram confrontados com a descolonização. Nacionalmente estávamos numa guerra colonial que já se prolongava há muito tempo, e com enorme desmoralização da parte dos militares portugueses.

Vasco Lourenço no início da entrevista:

O 25 de abril, como foi reconhecido depois por vários estudiosos internacionais, e o mais célebre foi um estudioso americano, dos Estados Unidos, foi o primeiro que deu o pontapé de saída neste processo de democratização dos anos 70. Foi, efetivamente, o 25 de abril que deu este pontapé de saída.

E - Qual a distinção entre o Movimento das Forças Armadas e o Movimento dos Capitães?

Vasco Lourenço: O Movimento dos Capitães foi o início da conspiração. Tudo começa na organização de um congresso de combatentes, que o Poder organizou, para concluir que a solução da guerra, que já vinha há treze anos e em três fontes distintas: há treze anos em Angola, onze anos na Guiné, e dez anos em Moçambique, que já se estava a desenrolar essa guerra, e o Governo considerou e organizou um congresso de combatentes, para concluir que a solução da guerra era o reforço militar, que havia que reforçar os meios para fazer a guerra. Ora, há bastante tempo que se vinha a discutir no seio dos militares, dos oficiais do Quadro Permanente, que a guerra não é a solução para nada, e que para as guerras tem sempre de se encontrar uma solução política, porque a guerra para guerra não tem sentido. Portanto, o poder político declara a guerra porque há razões para a declarar e as forças armadas fazem a guerra, mas para criar condições para que o poder político possa resolver o problema que o levou à declaração da guerra, e, portanto, tem que encontrar uma solução política.

E por isso, houve uma série de militares, os oficiais, que se organizaram para ir ao Congresso de Combatentes defender esta posição. Quando os organizadores souberam, proibiram os oficiais do Quadro Permanente de participar no congresso. Isso levantou problemas, houve uma contestação ao Congresso, fez-se um abaixo-assinado, que era proibido na altura, porque era um ato indisciplinado, recolheram-se mais de 400 assinaturas de oficiais, e enviou-se um telegrama para o congresso, com um texto simples que dizia “Nós, que assinamos, declaramos não ter nada a ver com as decisões que forem tomadas pelo congresso de combatentes.” Isso silenciou o congresso, e andava-se nesta discussão, “que fazer agora?”, quando surgiu um decreto-lei, o 353/73, que criava problemas de natureza corporativa dentro do exército. Como eram necessários capitães, que era o posto que estava a faltar mais e era o posto essencial para a continuação da guerra, dava condições aos cidadãos que já tivessem feito o serviço militar e tivessem ido à guerra como milicianos e tivessem regressado, que quisessem regressar no quadro permanente, dava-lhes condições que lhes permitia, inclusivamente, ficarem com a antiguidade maior do que os que tinham feito o curso todo de três anos e estavam já nos quadros permanentes. Isso foi aproveitado, há uma contestação dos militares para se organizarem ao contestar esse decreto-lei: a primeira contestação leva logo o Poder a publicar um outro decreto-lei, o 419/73, passado cerca de um mês, em que retira do alvo dos prejudicados retira os majores, e portanto ficaram só capitães a ser prejudicados, e nós organizamos uma reunião no dia 9 de setembro, monte Alentejano, ou monte Sobral, em Alcáçovas, perto de Évora, em Viana do Alentejo, organizamos uma reunião com 136 capitães e subalternos, e portanto é aí que nasce o movimento de capitães, que vai evoluindo, vai constatando e vai-se definindo que o problema não é corporativo; é um problema de natureza política, vai evoluindo, continua-se a organizar, e quando chegamos a Cascais no dia 5 de março de 1974, e é decidido fazer mesmo o golpe militar.

Nessa altura, nós alargamos o movimento, que era só do Exército até ali, alargamos à Marinha, e à Força Aérea, e, portanto, passou a chamar-se, o mesmo movimento, mas agora alargado, Movimento das Forças Armadas. E, portanto, a diferença é esta. Quem faz a conspiração praticamente toda, e ao fim e ao cabo, acaba por fazer o 25 de Abril, porque o 25 de Abril é feito essencialmente pelos militares do Exército, com uma participação relativamente pequena quer da Marinha quer da Força Aérea, mas passou a chamar-se Movimento das Forças Armadas, portanto a distinção é essa.

E - Ou seja, o Movimento dos Capitães organizou-se para formar o Movimento de Forças Armadas?

Vasco Lourenço: Exatamente, é a evolução natural. É o Movimento dos Capitães, que é só dentro do Exército, mas que vai fazer uma conspiração extraordinariamente rápida porque, se nós repararmos, entre o início da conspiração e o 25 de abril, foram 8 meses e pouco, eu costumo dizer que foi uma criança prematura que nasceu ainda com algumas malformações, mas enfim, sobreviveu bem, não é?

E - Gostaríamos também de saber como é que os soldados se sentiam em relação à guerra colonial, se concordavam ou estavam contra?

Vasco Lourenço: O exemplo que eu lhe posso dar para mostrar o sentimento da generalidade dos militares, oficiais, sargentos e praças, era este: A comissão normalmente durava 2 anos, às vezes menos uns dias, outras vezes prolongava-se, infelizmente havia situações em que chegava quase aos 3 anos. Mas cada um tinha uma folha de papel quadriculado, em que punha os meses, os dias, e ia fazendo cruzinhas a cada dia que passava, para ver quantos dias faltavam para regressar. Portanto, a situação é esta, eu para os meus soldados que foram comigo fazer a guerra na Guiné, a situação era esta: " vocês têm duas opções: Ou querem viver em Portugal, naquilo que se chamava metrópole na altura, e têm que ir à guerra, porque senão prendem-vos e não vos deixam viver aqui em paz ou outra opção é a de poder não viver em Portugal, e então têm de ir para o estrangeiro, desertar e não ir à guerra.” E portanto, as grandes generalidades dos soldados iam à guerra claramente porque eram obrigados a ir à guerra.

E - Foi esse descontentamento que levou a formação do movimento dos capitães, em geral? Eu ia-lhe perguntar como é que o movimento se tornou tão grande, para ter logo 103 pessoas, logo desde o início.

Vasco Lourenço: Vamos lá ver, não foi por geração espontânea que fizemos a primeira reunião, preparámo-la. Como eu lhe disse, congresso dos Combatentes, que se realizou no Porto, no dia 1 a 3 de julho de 1973, aí já houve contestação. E já houve mais de 400 oficiais que assinaram a tal declaração que dizia que não tinham nada que ver com as decisões associadas ao congresso. Portanto, a seguir fomos nos organizando, e quando vamos à grande reunião, já conseguimos levar lá, sempre de forma clandestina, porque isto era tudo clandestino, nós já conseguimos levar lá 136 capitães.

E - Qual é que dizia que era a sua maior preocupação com a revolução? O que achava que era a maior fragilidade?

Vasco Lourenço: Bem, houve vários momentos de perigo ao longo da conspiração. A primeira preocupação é que, quando fomos para essa reunião para Évora, Alcáçovas, no dia 9 de setembro de 1973, eu diria que havia três sentimentos globais que dividiam os capitães que foram para lá, os oficiais que participaram na reunião. O grupo maior ia preocupado essencialmente por razões corporativas, por causa dos decretos, que sentiam que estavam a prejudicar-nos pronto. A imagem que eu dei na altura, e que mantenho, é essa: As pessoas normalmente só se queixam quanto sentem que lhes estão a meter a mão nos bolsos, ou quando estão com dor de barriga. E naquela altura, estava toda a gente a dizer "Tira a mão, que o bolso é meu, porque estava-se a sentir prejudicado. Este era o grupo maior que foi para Évora. Depois havia, é preciso ver, nós tínhamos todos 20 e poucos anos, eu era dos capitães mais velhos e tinha 31 anos, e portanto, a rapaziada era nova, e havia alguns, um pequeno grupo, que ia por camaradagem, do estilo " vamos comer as febras, o meu amigo vai, eu também vou." vocês, os jovens, sabem como é que é isso. E depois havia um grupo indistinto, que ia a pensar " eu vou ter que aproveitar esta movimentação, para nos organizarmos, para atingir o fim, que era resolver o problema da guerra, resolver o problema político da ditadura em Portugal. Mas é evidente que estes não queriam dizer de caras que estavam a pensar nisso, senão afugentavam a caça, como eu costumo dizer.

E, portanto, o que é facto é que nós fomos para lá, e houve um perigo logo muito grande aí, porque havia quem defendesse que devíamos fazer logo uma grande manifestação, irmos fardados, para a Avenida da Liberdade, para protestar contra os decretos. A imagem que eu dei na altura foi um comboio em andamento, que não se pára ficando de frente contra ele, temos que pôr um obstáculo nos carris, fazê-lo descarrilar, e aí parámo-lo. E, portanto, se nós formos para a manifestação somos imediatamente presos, demitidos, etc., e não se faz nada, temos que nos organizar devidamente. E, portanto, nós tivemos o bom senso e essa capacidade, de não ir por aí, e de sair dali já com uma comissão coordenadora nomeada para nos irmos organizando, e protestando, e criamos ali um instrumento que acabou por ser essencial, que foi: "qual é o objetivo? É derrubar o governo?" Não, é recuperar o prestígio das Forças Armadas junto da população portuguesa. E foi o objetivo que nós criamos ali, que teve dois sentidos: Um serviu de instrumento de mobilização a mais oficiais para o movimento; outro serviu de capa de camuflagem perante o poder, quer o poder político, quer o poder militar. E o processo até ao 25 de Abril teve sempre por base isso, porque nós assumimos, mesmo quando os principais responsáveis militares nos contestavam e nos confrontavam porque nós andávamos a fazer reuniões, nós dizíamos "Andamos sim senhor, porque estamos preocupados com o prestígio que as forças armadas têm junto da população, e nós andamos a tentar recuperar este prestígio junto da população. E qual foi o esquema seguido ao longo dos 8 meses? Foi fácil de mostrar à generalidade dos oficiais estávamos com pouco prestígio junto da população, sentíamos isso na carne, no contacto com a população. E então fez-se a pergunta? Mas porquê? Mas porque é que nós não temos prestígio junto da população? Nós, até estamos a fazer a guerra! E por isso, não percebemos porque é que as pessoas não gostam das Forças Armadas e dos militares. Resposta foi fácil: Porque veem em nós, precisamente, o suporte de um regime que obriga a fazer a guerra, e que é uma ditadura repressiva. E assim vem a pergunta. " Está bem, nós queremos recuperar o prestígio das Forças Armadas dentro da população, o que é que temos de fazer?" E a resposta é fácil, deixar de ser esse suporte que está a manter o governo que impõe a guerra, etc., etc. "Aí é? Então como?" É a pergunta que se faz a seguir. E a resposta é fácil: Fazer um golpe militar, derrubar a ditadura, instituir a liberdade e a democracia através de um golpe militar. E, portanto, são estes processos.

 É evidente o perigo, nomeadamente se fossemos para aquela solução de manifestações e etc. houve perigo. Assim como em dezembro de 73, há um perigo muito forte, porque nós ainda não estávamos com a nossa organização consolidada, há um perigo muito forte, que é uma tentativa de nos arrastar a nós para um golpe militar de extrema-direita, liderado pelo general  Kaúlza de Arriaga e mais três generais, que vêm dizer “Bem, nós concordamos convosco, é preciso recuperar o prestígio das forças armadas junto da população, nós vamos, num golpe,  aumentar os vencimentos aos militares, vamos dar-lhes mais regalias, etc. etc.”, e nós dissemos que, para nós, o prestígio da população não se cria com mais ou menos de vencimento, ou mais regalias. Agora, houve o perigo de, se esse golpe fosse para a frente, se conseguissem levar o golpe para a frente, nós estávamos muito mal organizados, e inclusive alguns de nós podiam ter entrado no golpe, pensando que estavam a entrar no golpe certo, mas estavam a entrar no golpe errado. É mais um outro perigo. Enfim, eu estive envolvido na denúncia desse golpe, do Kaúlza de Arriaga, conseguimos fazê-lo abortar e foi mais um dos episódios da conspiração que acabou por nos permitir chegar ao 25 de Abril com sucesso.

E - Na Europa, havia Para além de Portugal o regime de extrema-direita, que era o de Espanha. Acredita que dentro da Península Ibérica havia pressão exterior, como dos Estados Unidos ou da União Soviética para que os regimes colapsassem, ou vigorassem?

Vasco Lourenço: Nós vivíamos, de facto, num mundo bipolar das duas superpotências. A chamada cortina de ferro separava o ocidente da União Soviética. Tínhamos aqui ao lado a nossa vizinha, que tinha uma ditadura bem mais dura do que a portuguesa. Tivemos que ter cuidado para que não vigorasse o Pacto Ibérico que havia sido assinado entre o Salazar e Franco, e que os espanhóis não viessem aqui tentar ajudar Marcello Caetano de acordo com esse Pacto Ibérico. Apostamos em que, naquele velho ditado, quando se vê as barbas do vizinho a arder, há que pôr as nossas barbas de molho. E portanto, nós acreditamos que quando Franco visse que o ditador daqui estava a ter problemas, ele não tivesse a vontade de cá vir, mas tivesse era a preocupação de reforçar a sua segurança para não ter também problemas internos. A seguir ao 25 de Abril há efetivamente uma tentativa de influenciar a evolução do processo em Portugal, quer por parte dos Estados Unidos, quer por parte da União Soviética.

Dizia-se na altura que Cascais era sítio do mundo que tinha mais espiões por metro quadrado. Eu penso que, a seguir ao 25 de abril isso voltou a acontecer, caíram aqui em Portugal espiões de todo o lado, era uma coisa tremenda. E tentaram influenciar-nos fortemente, e eu acho que nós tivemos a capacidade para manter um posicionamento, como eu costumava dizer juntamente com Melo Antunes, radicalmente autónomo e independente em relação a todos. E portanto, tivemos aqui, a certa altura, os Americanos através do Secretário de Estado deles, que achava que Portugal podia ser a vacina da Europa, isto é, deixava que se instalasse aqui o comunismo, a seguir seria tão mal tratado que nunca mais nenhum País europeu teria a veleidade de pensar em instalar o comunismo. Os Soviéticos tentaram forçar, apesar de dizerem que respeitavam a separação de terrenos, o "Tratado de Tordesilhas" que havia na altura, a separação entre os Americanos e os Soviéticos, e Portugal estava num espaço americano. Os Soviéticos diziam que respeitavam mas tentaram, em certa medida, criar aqui uma espécie de segunda Cuba, e nós tivemos que impôr, e andamos, como eu costumo dizer, andamos a prendermo-nos uns aos outros, para impôr as promessas que tínhamos feito, de liberdade e de democracia, e conseguir, de facto, que a democracia se consolidasse em Portugal, continuando a vigorar, passados 46 anos.  

E - Como tinha dito agora há pouco, em dezembro de 73 tinha havido uma tentativa de instaurar um regime de ditadura militar. Isto era parte de 3 cenários, não era? E este fora o mais votado.

Vasco Lourenço: Não, não, está a confundir. A pergunta que me mandaram, e penso que é a isso que se está a referir, tem que ver com a reunião que fizemos no dia 1 de dezembro em Óbidos, em que pusemos 3 cenários à votação: era fazer um golpe militar imediato, era a de continuar as reivindicações até atingir uma solução política para a guerra, e era o de impôr eleições livres, controladas pelo exército. A tentativa de golpe do Kaúlza de Arriaga é exterior, digamos, a isso, é exterior ao movimento dos Capitães; vem tentar aliciar o Movimento dos Capitães, o que eles sabiam que existia, nós estávamos a fazer contactos, a tentar alargar a base de apoio e de participação, e nessas tentativas é que aparece um coronel a falar em nome de 4 generais, a propor um golpe militar.

Mas o que me pergunta, e eu penso compreender o sentido da vossa pergunta, a questão que me levanta é "Porquê que em Óbidos não optamos desde logo pela solução do golpe militar, e depois essa acaba por ser a solução que na continuação acaba por ser feita no 25 de abril. Como eu já vos disse, o processo tinha de ser conduzido com muito cuidado, e não se devia avançar muito rapidamente para declarar que se queria fazer o golpe militar. Em Óbidos, portanto, em dezembro, 4 meses depois de se ter começado o movimento, já havia condições, e já havia muitos a falar na necessidade de fazer um golpe militar, mas a situação ainda não tinha chegado. E a maioria dos que participaram na reunião em Óbidos, nós participamos nessa reunião, 180 e poucos oficiais, ainda já não eram só capitães, havia capitães e majores. Nós participamos 180 e poucos oficiais, mas já representando cerca de 500, à volta de 550, porque, a partir de uma certa altura, para as reuniões iam delegados dos oficiais que estavam envolvidos nas diferentes unidades, e portanto, já não se representavam só a si próprios, representavam mais camaradas. O que aconteceu é que há uma maioria que opta pela continuação da luta reivindicativa, mas há um mundo muito significativo que se aproxima de um número dos que votaram pela continuação da luta reivindicativa, que vota já pelo golpe militar. E, dos que votaram pela continuação da luta reivindicativa, há um número também razoável, que toma a seguinte posição: "eu voto assim, mas com tendência para a outra solução do golpe militar", e inclusivamente, se nós fossemos juntar os que votaram "golpe militar já", com os que votaram "eu ainda não voto o golpe militar, mas é com tendência para isso, se a outra não der solução", esse número até é superior. Portanto, de Óbidos já sai claramente, a convicção de que a evolução tinha que levar-nos a realizar um golpe militar, pelo que, também a nossa convicção é de que não haveria já possibilidades de forçar o governo, os ditadores, a alterarem a situação e resolverem o problema da guerra e resolverem o problema das liberdades em Portugal.

E - Acha que antes da Revolução começar havia pessoas, dentro dos "patentes" mais altas, que queriam cancelar o golpe?

Vasco Lourenço: Houve sempre, houve alguns que saíram, houve um momento, por exemplo, em que houve "eleições", como eu costumo dizer, para o parlamento, na altura chamava-se Assembleia Nacional, em fins de outubro de 73. E na sequência disso, alguns dos capitães, nomeadamente um que tinha uma ligação muito estreita, até porque prestava serviço no mesmo serviço do exército, que era o serviço cartográfico do exército. O governo nomeou um coronel desse serviço para subsecretário de Estado do Exército, precisamente para tentar "comprar-nos", porque tinha muito boas relações com esse capitão, que ele sabia que pertencia mesmo à comissão coordenadora que tinha sido escolhida em Alcáçovas. E esse capitão apareceu-nos a dizer "O governo agora vai fazer-nos a vontade, vai deixar de nos tirar as mãos dos bolsos, e nós temos que dar um cheque em branco ao governo". E isso provocou inclusivamente a primeira cisão; aliás, dentro da conspiração é a única cisão que existiu dentro do Movimento. Eu liderei a oposição a essa atitude, disse "Não há cheques em branco para ninguém, o nosso problema não são os decretos, o nosso problema não é estarem-nos a meter as mãos nos bolsos, o nosso problema é muito maior." E portanto, é mais um dos momentos de perigo, que eu dizia há pouco, que eu referia que houve ao longo da conspiração, é mais um momento de perigo.

Portanto, ao longo do processo conspirativo houve oficiais que estavam no processo e saíram, houve alguns que reentraram só no dia 25 de abril à noite, quando já estava tudo definido! Mas os processos são sempre assim, é evidente que há um núcleo duro, como se costuma dizer, há um núcleo forte que conduz a conspiração no sentido de que é necessária uma solução para a guerra e é necessária uma solução que tem de passar em primeiro lugar, por derrubar a ditadura e criar uma democracia, e depois haverá condições para resolver o problema da guerra, mas, que inclusivamente defende e impõe a elaboração e a apresentação de um programa político, porque havia quem dissesse "Não, vamos derrubar, mas o general depois diz como é que é!" Não, o general não diz como é que é, o general estará connosco se aceitar o programa político que nós vamos aprovar. E portanto, o percurso não foi assim tão fácil como se possa entender, eu costumo também dizer que tudo pareceu fácil porque correu bem. Correu muito bem, e portanto, até parece que não houve dificuldades, mas foi bastante complicado e difícil.

E - Havia aquele medo de alguém sair do movimento e trair, de dizerem que este e aquele estavam a participar.

Vasco Lourenço: Repare, nós sabíamos que, e tivemos situações concretas, eu tive algumas pessoais concretas, em que sabíamos que o poder ia sabendo quase tudo que se passava lá, mas nós também tivemos, e também fui um bocado responsável por isso, tivemos esta postura: nós tínhamos a noção de que não era fácil manter tudo no segredo, e por isso mantemos o essencial no segredo, mas tivemos uma postura de confronto aberto com o Poder. E eu penso que o que nós provocávamos da parte do Poder era uma situação deste tipo: "estes indivíduos que até sabem de segurança, dada a sua formação, estão a fazer as coisas muito à aberta e sem segurança. Portanto, há duas hipóteses: ou são uma cambada de imbecis incompetentes que nem sequer conseguem andar a fazer as coisas em segurança, e portanto não temos que nos preocupar com eles, porque não vão a lado nenhum;" e depois havia uma outra conclusão absolutamente oposta, que era isto "ó pá, eles que até sabem de segurança, se estão a fazer isto desta maneira, é porque estão muito à vontade, têm muita força, portanto temos de ter muito cuidado com eles." E isto paralisou-os. E nós, ao longo da conspiração, sabíamos perfeitamente que a maior parte das coisas eram levadas ao conhecimento superior, por alguns infiltrados que estavam lá no meio de nós, mas a parte essencial havia que mantê-la em segurança. E foi por isso que, no dia 25 de Abril, o Poder é apanhado de calças na mão, como se costuma dizer, absolutamente surpreendido, quer o poder aqui em Portugal, às 3 da manhã numa conversa telefónica que nós escutamos entre ministro do exército e o ministro da Defesa nacional, o ministro do exército estava a dizer " ainda estou aqui no meu gabinete, porque estou-me a preparar, vou hoje a Vendas Novas lá visitar uma unidade militar". E já as tropas do MFA estavam na rua, e eles ainda estavam a dizer isso nas conversas. E mesmo internacionalmente, quer os Estados Unidos, quer a união Soviética, e quer todos os outros, foram apanhados absolutamente surpreendidos. Ninguém soube ou sabia que se ia dar o que efetivamente se deu.

E: Acha que o levantamento das Caldas, no dia 16 de março de 1974, foi um risco para que a Revolução nunca tivesse acontecido?

Vasco Lourenço: Pois, o 16 de março ainda hoje é muito controverso. O problema é que nós, no meio do movimento, tínhamos um grupo à volta do general Spínola, que tinha um projeto de poder pessoal. E, portanto, o que é facto é que Cascais, no dia 5 de março, nós decidimos fazer o golpe militar e optámos pela realização de um programa político. Escolhemos os dois generais principais, que eram o Costa Gomes e o Spínola, para os convidar para dirigirem o processo depois do golpe militar, e convidá-los-íamos desde que eles aceitassem o programa político que nós íamos aprovar. Mas houve um grupo spinolista que defendeu que não era preciso programa político, tínhamos o chefe, que era o general Spínola, para eles, para nós eram os dois, e em primeiro lugar, o Costa Gomes, e ele diria como. Nós impusemos que não, que não dávamos cheque em branco nenhum, a nenhum General. E a seguir, tudo se precipita, porque primeiro precipita-se com a transferência compulsiva de quatro capitães, um dos quais eu, três para as ilhas e o outro para Bragança.

Depois, dá-se aquilo que na altura ficou conhecido como brigada do reumático, que foi os generais irem ao Marcello Caetano declarar-lhe o seu apoio incondicional. Como os dois generais que nós tínhamos escolhido não foram, foram demitidos. E isso criou condições para que o grupo spinolista pressionasse, dentro do movimento, porque isso é feito dentro do movimento, pressionasse para apressar uma tentativa de golpe. E apressá-la sem ter sido elaborado o programa político. Eles tentam recuperar, no 16 de março, aquilo que tinham perdido na reunião do dia 5 de março, 11 dias antes. É feito em cima do joelho, de uma forma precipitada, muito mal planeada, e teve uma consequência negativa muito forte: o meu afastamento, porque eu tinha sido transferido no dia 9, o movimento decidiu raptar-me para simular que eu até queria ir, mas o movimento não me deixava ir. No dia 9 à noite, decidimos entregarmo-nos, os dois raptados (porque um terceiro não tinha saído de casa a tempo para ser raptado, e, portanto, acabou por ser forçado a embarcar no avião e foi para Angra do Heroísmo). Entregámo-nos, ficamos presos, fiquei preso do dia 9 ao dia 15, e no dia 15 segui, efetivamente, para Ponta Delgada. Ora, eu era responsável operacional de todo o movimento. Era o responsável pelas estruturas de ligação do movimento. Portanto, no dia 16 essa estrutura não funcionou, porque faltou a coordenação da minha parte.

Não funcionou, e o 16 de março falhou, e ainda bem que falhou. Teria sido um desastre se, de facto, tivesse avançado sem programa político e com o poder nas mãos do general Spínola, como eles tentavam. Na sequência disso, eu sou substituído. Nós tínhamos uma direção de 3 oficiais, eram 2 majores, o Vítor Alves, e o Otelo Saraiva de Carvalho, e um capitão que era eu, era a direção do movimento. Eu era o responsável operacional, o Vítor Alves era o responsável pela ligação à Marinha e à Força Aérea, e o Otelo era o responsável pelo secretariado. Assim que eu saí daqui, a direção reconstituiu-se, criou só duas áreas, a área operacional e a área política. O Otelo avança para o meu lugar, fica o responsável operacional, o Vítor Alves fica o responsável político. A estrutura de ligação que eu tinha montada, da qual o próprio Otelo também fazia parte, já estava bastante avançada e já foi possível ser substituído pelo Otelo. E, como eu costumo dizer, com o Otelo correu muito bem, comigo falta fazer a prova, não sabemos como é que teria corrido, o que não deixou de constituir para mim o maior desgosto que eu tive até hoje na vida, a maior desilusão, que foi não estar aqui a comandar as operações, ter que estar em Ponta Delgada a atuar também, porque também atuamos lá, não foi preciso uma atuação radical, mas também atuamos em Ponta Delgada para tomar conta da Ilha de São Miguel, no dia 25 de Abril.

Portanto, o 16 de março podia ter deitado tudo a perder, felizmente falhou, e acabou por funcionar positivamente, por várias razões: Primeiro, permitiu ao Otelo, que esteve envolvido no 16 de março, e passou entre os pingos da chuva, como se costuma dizer. Não foi preso, foi detetado, e permitiu-lhe tirar conclusões da forma como o poder respondia a uma tentativa de golpe do nosso lado. E portanto, deu-lhe indicações precisas para a preparação do plano de operações que depois foi executado no 25 de Abril. Por outro lado, criou, como houve uma série de militares que foram presos, criou a vontade nos outros de acelerar o processo para libertar os camaradas que tinham sido presos. E, por outro lado, cria uma sensação de segurança no Poder, porque ficou convencido que nos tinha arrumado, quando efetivamente, não nos tinha arrumado. Portanto, tendo podido ser um desastre, tendo comprometido todo um processo, acabou, na prática, por ser relativamente positivo, o que levou a alguns, depois, do estilo daquele que acerta no Totobola depois dos jogos terem sido realizados. Levou alguns no fim a dizer que o 16 de março tinha sido feito como um golpe de ensaio. É evidente que não foi, felizmente falhou, porque foi muito mal preparado. Aliás, os spinolistas em todo o processo, sempre que tentaram fazer alguma coisa contra o movimento, fizeram-no sempre de uma forma muito mal planeada, em cima do joelho, e falharam sempre.

E - Com 25 de Abril, acabou o Estado Novo e começou uma fase de transição para um novo regime. Assim, começaram a notar-se mais os conflitos políticos e houve muita contestação ao Espírito do 25 de Abril. O que levou à criação do documento dos nove?

Vasco Lourenço: Vamos lá ver, houve uma coisa, os objetivos, que nos uniram, ao grande grupo dos militares de Abril do MFA, que foi a necessidade de resolver o problema da guerra, para isso, a necessidade de democratizar o país, e criar condições para o país se desenvolver. Isso foi aquilo que nos uniu, o essencial para o 25 de Abril. Na questão da democratização, era fundamental como nós decidimos concretizá-la: fazer eleições livres, no prazo de 1 ano, para uma Assembleia Constituinte, que depois aprovasse uma Constituição, porque os militares, numa atitude única em toda a história Universal, e por isso é que hoje o 25 de Abril é tão único, derrubaram uma ditadura e não quiseram ficar com o poder. Entregaram-no a sociedade, através de formas democráticas.

No entanto, e como eu já vos referi, havia dentro do movimento um grupo com um projeto de poder pessoal, à volta do general Spínola. E tentou em impô-lo e implementá-lo. Tentou logo no dia 25 de Abril à noite, ainda no posto de comando, dizer "O programa político já não é preciso, já resolvemos o problema e agora já não é preciso", e houve alguém que disse "General, os tanques ainda estão na rua, o senhor comprometeu-se com este programa, ou o aceita, ou o senhor sai pela porta fora e nós continuamos". O que é facto é que conseguiu mesmo assim algumas alterações ao programa político, nomeadamente no aspeto do direito dos povos à autodeterminação e independência, portanto, da questão colonial, que vem provocar o aceleramento das ações de guerra dos movimentos de libertação, e esteve na origem de centenas de mortos, eu penso que anda à volta de 400 e poucos mortos, só do nosso lado, entre 25 de Abril e depois a declaração da paz com os movimentos de libertação. E o Spínola, que não é escolhido para Presidente da Junta, e portanto para Presidente da República por nós, porque nós escolhemos o Costa Gomes, mas enfim, Costa Gomes era muito mais sabido que o Spínola, que era um vaidosão, e, como eu costumava dizer ao Costa Gomes, " estendeu-lhe a passadeira vermelha e ele foi por ali fora, todo vaidoso, convencido, e o senhor sabia bem que o primeiro milho normalmente costuma ser para os pardais."

O que é facto é que Spínola ficou Presidente da República e tentou impôr o seu projeto pessoal, e fez várias tentativas, a primeira é logo em julho, que ficou conhecido por golpe Palma Carlos, depois vem o 28 de setembro, que faz com que o Spínola resigne e saia da presidência da república e avance o Costa Gomes, e depois vem o 11 de março de 1975 que é a tentativa desesperada que o Spínola faz, alegando que nós não queríamos realizar as eleições, e deixando-se escorregar numa casca de banana que lhe puseram na frente, que foi a invenção de uma "Matança da Páscoa", da matança de 1500 pessoas, nas quais estava Spínola, uma invenção, com que ninguém viu essa lista, não faço a mínima ideia, foi claramente uma invenção. Faz o 11 de março e o que é que acontece? Cada vez que se tenta este golpe à direita contra o programa MFA, isso falha, abre-se espaço para que, à esquerda, se dê aquilo que se dizia que era um salto qualitativo. E a certa altura a seguir ao 11 de março, o que se passa é que dentro do movimento, isto já vinha a acontecer, há um tempo, desde o 28 de setembro, já havia sinais disso, aparece uma fação a dizer que o Movimento se devia transformar numa vanguarda revolucionária e impôr uma revolução socialista. Começam a surgir as forças de extrema-esquerda, que na prática têm atitudes que só favorecem a extrema-direita, e começa, fortemente infiltradas pela CIA, desde sempre, há um episódio que é o assalto à Embaixada de Espanha, em setembro de 1975, está absolutamente comprovado que é a CIA que está por trás disso, é a extrema-esquerda, mas empurrado pela CIA. O que é facto é que tudo isso põe em causa o objetivo principal que nos teria unido até aí, que era eleições para a Assembleia Constituinte.

Apesar das divisões, nós conseguimos ainda impôr as eleições, e as eleições para a Assembleia Constituinte fazem-se no último dia do prazo estabelecido, elas realizam-se no dia 25 de abril de 1975, um ano depois do 25 de Abril. Os resultados não são os  que aparentemente seriam, devido a quem estava a ter mais força nas ruas, na contestação, e a certa altura, dentro do Movimento, gera-se de facto a necessidade de impôr o programa político que era a democracia e a aprovação da Constituição depois de a Assembleia ser eleita. E é por isso que, a certa altura, os que defendem o programa inicial do movimento se impõem e fazem um documento, nome de membros do Conselho de Revolução, que assinam este documento, e por isso ficou conhecido como o "Documento dos Nove". Tenho a honra de ter sido o primeiro subscritor desses 9. Na minha opinião, mas sou suspeito porque sou um deles, é aí que esteve sempre o sentir genuíno dos militares de Abril, que fizeram o 25 de Abril para criar aqui em Portugal um estado livre, por fim à ditadura, fosse ela em que sentido fosse, termos liberdade e termos democracia, que com todos os defeitos que tem, porque não há sistemas perfeitos, apesar de tudo continua a ser o menos mau de todos aqueles que conhecemos.

E - Depois da revolução de 1974, o nosso governo ficou, para falar em português, uma "salsada". Havia governos provisórios, havia várias incertezas, havia pessoas no governo que acreditavam que as pessoas ainda não estavam prontas para votar, e dos principais acontecimentos, a nosso ver, foi o "Verão Quente de 1975", que foi também influenciado por uma certa anarquia que havia dentro dos governos e da forma como as forças armadas a sociedade estavam a ver no que Portugal estava a tornar. Concorda com esta definição?

Vasco Lourenço: Vamos lá ver, eu já vos referi parte do processo, não é? O "Verão Quente" é uma das expressões que se usa, e a outra é "PREC", "Processo Revolucionário em Curso", que aliás é uma expressão que foi criada por mim sem dar por isso, porque eu era porta-voz de tudo o que era Movimento das Forças Armadas, e uma vez como porta-voz do Conselho da revolução, falar aos jornalistas depois de uma reunião eu terei usado essa expressão, e pegou, passou-se a falar em Processo Revolucionário em Curso, e é o PREC. É um período extraordinariamente controverso, um período muito agitado, é um período que eu digo que é extraordinariamente rico. Tem muitos detratores, tem muitos saudosistas, enfim, eu costumo dizer em relação a esses dois anos de 74 e 75, quero dizer " estes 2 anos já ninguém mos tira". Foi um período extraordinariamente rico, e em que muito se avançou na construção de uma sociedade mais justa em Portugal do que aquilo que existia antes. Agora, houve problemas como há em todas as revoluções, nós estivemos ali 2 anos num processo revolucionário que foi muito complicado. É evidente que um dos problemas é que houve quem defendesse, e houve quem conseguisse de certa medida, destruir o tipo de Forças Armadas disciplinadas que existia, avançar a indisciplina nos quartéis. É preciso ver que, por exemplo, a seguir ao 25 de Abril as forças de segurança deixaram de ser respeitadas pelos cidadãos! Os polícias não eram obedecidos na rua, e só quando havia problemas em fábricas, empresas, ou em qualquer sítio, tinha que ir lá um militar resolver porque os cidadãos só aceitavam a autoridade de um militar! Eu costumava escutar uma anedota que era:

Um dia num elétrico apinhado, toda a gente em pé, a certa altura há um indivíduo que diz ao outro que vai ao lado dele:

"Ouça lá, você é do MFA!"

"Eu não, não sou do MFA."

"Bem, mas tem um parente no MFA!"

"Não, não conheço ninguém-"

"Tem um amigo no MFA!"

"Não tenho, não tenho ninguém no MFA."

"Então, ó senhor tire-me o pé de cima que me vem pisar os calos há não sei quanto tempo!"

 

De facto, na altura a seguir ao 25 de Abril, a autoridade era complicada. É claro, foi-se recuperando aos poucos, mas houve quem tentasse de facto, com uma revolução, tentasse como eu já vos disse, transformar o MFA numa Vanguarda revolucionária, e isso foi um processo complicado. Deu origem à constituição do "Documento dos Nove," depois há dentro do movimento os três grupos: O grupo dos nove, depois tinha o grupo gonçalvista, mais ligado ao primeiro-ministro, quero dizer o Vasco Gonçalves, mais ligado ao partido comunista, e depois o grupo ligado ao Otelo, que eram esquerdistas. E portanto, tudo isto vai consumar-se no 25 de novembro de 1975, que consegue garantir condições para que a Assembleia Constituinte continue a funcionar e leve até ao fim a aprovação da Constituição. Portanto, consegue impôr o programa do MFA. E com vitórias para os dois lados, ou vitórias em duas direções, digamos assim. Por um lado, e aparentemente, anula a fação pró-comunista e pró-esquerdista, mas por outro lado anula também a fação da extrema-direita, que estava sobre o chapéu do grupo dos nove e tentou fazer, efetivamente um golpe extrema-direita no 25 de novembro. E portanto, anula isso, e por isso é que eu costumo dizer por exemplo, ao comparar o 5 de outubro de 1910 com o 25 de Abril 74, eu digo que o 5 de outubro falhou, porque não teve o seu 25 de novembro, que o 25 de Abril teve. O 25 de novembro põe nos carris novamente o 25 de abril, põe nos carris o programa do MFA, e impõe a solução democrática, cria condições para que a Assembleia Constituinte possa aprovar livremente uma constituição. E depois, a solução seguida, que é a criação de um órgão de soberania formado por militares com poderes próprios, que era o Conselho de Revolução. Durante um período de transição, que estava previsto que fossem 4 anos e acabou por durar 6, mas durante um período de transição, consegue a consolidação da democracia, e evita que o 25 de novembro se transforme num novo 28 de maio, como houve em 1926, e que depois deu origem à ditadura militar, e depois mais tarde ao Estado Novo, que nos reprimiu durante 48 anos. Portanto, é evidente que a olhar para esse Verão Quente, houve situações muito complicadas.

Cometeram-se erros? Cometeram-se, só não queima as mãos quem não mete as mãos no lume. Portanto, agora eu posso, por exemplo, chamar-vos a atenção para isto, quando dizem que foi terrível, etc. etc., eu pergunto quantas mortes é que houve? Porque havias notícias nos jornais em que Portugal estava a ferro e fogo, mortes na rua, quantas mortes é que houve em 74 e 75?  Houve só as mortes provocadas pela extrema-direita.

E - Acredita que estivemos próximos da guerra civil?

Vasco Lourenço: Eu diria que sim, que estivemos próximos da Guerra Civil. Em cima do 25 de novembro de 1975, aí a partir do princípio de novembro, a situação agudizou-se de tal maneira que nós estivemos perto da guerra civil. A seguir a ter havido um cerco à Assembleia Constituinte pelos trabalhadores Metalúrgicos da cintura industrial de Lisboa houve quem defendesse a retirada da Assembleia Constituinte para o Porto, porque o país estava relativamente dividido, falava-se no Rio Maior, não sei se sabem, é um pouco a Norte daqui de Lisboa, e dizia-se que para lá do Rio Maior a situação era outra.

 E portanto, houve quem defendesse que a Assembleia Constituinte se passasse a reunir no Porto. Houve líderes políticos, partidários, que chegaram a ir com comitivas para o Porto. Lembro-me o PS, com o Mário Soares e mais dois ou três líderes chegou a ir para o Porto, o CDS, com o Freitas do Amaral , mais dois ou três líderes chegaram a ir para o Porto, o PPD, que era como na altura se chamava o PSD, o líder Emídio Guerreiro já vivia no Porto. E dentro dos militares, nomeadamente dentro do grupo dos nove, houve quem defendesse a solução de retirarmo-nos para o Porto, com as forças militares que, se estivessem ainda do nosso lado, saíssem e nos acompanhassem, e havia três ou quatro militares que diziam que estavam em condições de avançar, isso permitiria a criação da chamada "Comuna de Lisboa", e depois nós veremos a conquista de Lisboa. Eu costumo dizer, por brincadeira, "Pois é, vínhamos normalmente conquistar Lisboa aos mouros, não é?" E portanto, na altura fui eu que me opus a essa solução, vetei, com alguns a dizer "Mas tu não tens o direito de veto". Mas eu veto, não admito essa solução, isso será a Guerra Civil. E portanto, nós vamos ter de ficar aqui em Lisboa, vamos ter que garantir o apoio do Presidente da República, porque institucionalmente terá muito peso. Se nós conseguirmos que o Presidente da República, general Costa Gomes, se mantenha do nosso lado, a apoiar-nos, nós vamos ganhar! Porque eu pensava, e continuo a pensar que compreendo a psicologia dos militares, e sei quão importante é esse fator institucional. E portanto, opus-me a isso e penso que quem vem a ter também um papel decisivo no evitar da guerra civil é precisamente o Presidente da República, Costa Gomes. Tenho o hábito de tentar não ser exageradamente humilde, e quando acho que fiz alguma coisa que acho que é positivo não escondo e assumo. E portanto, considero-me um dos dois principais responsáveis, juntamente com o general Costa Gomes, por termos evitado a guerra civil nessa altura.

Se esteve perto? É evidente que há quem diga que não, mas esteve muito perto, e como eu costumo dizer, essa é outra vitória do 25 de novembro, conseguimos evitar o pior. E evitar o pior quando se pôs travão ao que a extrema-direita queria fazer. A figura principal que surgiu a dar a cara, na altura, era o Jaime Neves, quando se conseguiu impôr a dizer, num briefing que fizemos no dia 27, a dirigir-se o Presidente da República na Unidade de Comandos na Amadora, a dizer "Eu e os meus homens não estamos satisfeitos , queremos mais.", e eu a mandá-lo calar, a dizer-lhe que já tinha dito asneiras a mais, e ele calou-se. E de facto, não foi fácil, mas a Guerra Civil, que esteve perto, felizmente foi evitada.

E - Acha que o 25 de Abril de 1974 pode ter motivado noutros países, que também estavam em ditaduras, a revolucionarem-se?

Vasco Lourenço: Eu já disse há pouco que o 25 de Abril foi de facto o primeiro ato de democratização nos anos 70. Teve influência em todo o mundo. O primeiro em que teve influência direta foi na Grécia. Havia na Grécia a chamada “ditadura dos Coronéis”, e teve uma influência direta logo: passado pouco tempo, os militares gregos perceberam que podiam seguir o nosso exemplo e impôr um Estado democrático, acabando com a ditadura. Teve a seguir, influência direta em Espanha. Em Espanha demorou um pouco mais, mas também teve uma influência muito direta. Aí, com participação direta nossa no contacto com oficiais espanhóis, incentivando-os a organizarem-se para levarem ao fim da ditadura espanhola. Efetivamente, eles fizeram-no, a UMD, União Militar Democrática, que se extinguiu quando é decretada a democracia, quer dizer quando é decretado o fim da ditadura, essa organização de militares auto-extinguiu-se de imediato, tomou a iniciativa de se extinguir. Tem influência, depois, em vários países no mundo. Tem influência na própria Indonésia, que havia lá uma ditadura, que chegou lá o 25 de Abril e teve muita influência. Tem influência decisiva em toda a América Latina: Existiam lá várias ditaduras militares que começam a ter contactos com Portugal e connosco e tem influência. Eu lembro-me que, quando, em 1981 eu visitei pela primeira vez o Brasil, tive contactos com alguns oficiais brasileiros que me perguntavam "Mas como é que nós podemos organizar-nos?" E eu dizia: "Vocês têm de convencer os militares de que servem o povo, servem a população, e não servem ditaduras, não servem ditadores." E, passado relativamente pouco tempo, de facto a ditadura militar terminou. Teve uma influência decisiva no fim do Apartheid, com as independências, nomeadamente de Angola e Moçambique, influencia decisivamente o fim do Apartheid.

Tem influência em vários sítios, e na minha opinião, acaba por ter alguma influência na queda do muro de Berlim. Já são passados uns anos mais afastados, mas o movimento que dá origem à queda do muro de Berlim vem beber muito no que foi aqui o 25 de Abril, este movimento Popular. E porquê? Porque, por outro tipo de razões, o 25 de Abril é extraordinariamente propagandeado nesses países do mundo socialista, da União Soviética. E portanto acaba por ter uma importância muito decisiva. Por isso mesmo, eu continuo a considerar que o 25 de Abril é um ato único, de facto, na história Universal, porque não se conhece mais nenhum acontecimento em que haja um grupo de militares, que sendo o esteio de uma ditadura, rouba a ditadura e entrega rapidamente o poder à população, e têm de facto uma influência. Posso dizer-vos que na altura, dois pormenores: Primeiro, todos os dias havia jornais em qualquer parte do mundo que na primeira página, Portugal aparecia lá, as televisões, as rádios, etc. etc. E depois aqui em Portugal, além de, como eu vos disse há pouco, dos espiões terem caído aqui, caíram cá os revolucionários todos do mundo. E a influenciar bastante o nosso processo! Eu costumava dizer, inclusivamente, o seguinte: "Cuidado, vocês não conseguem fazer as revoluções nos vossos países, querem vir fazê-las aqui? Deixem-nos nós fazer a nossa revolução!" E garanto-vos que, para o bem e para o mal, e talvez mais acentuadamente para o mal, houve aqui influência e participação naquela tal anarquia que há pouco me referiam, do mundo dos revolucionários estrangeiros que aqui caíram, frustrados por não poderem fazer as revoluções nos seus países e a tentarem fazê-la em Portugal. De facto, foram 2 anos de uma vivência com uma intensidade que só tendo vivido!

E - Sobre o que disse agora há pouco, acredita que o 25 de Abril foi a prova verdadeira de que a população lutou pelas suas liberdades, e pela democracia em geral?

Vasco Lourenço: Vamos lá ver, o 25 de Abril tem as características que tem, e temos que ver antes: há efetivamente uma luta grande de muitos democratas, muitos antifascistas, que vão criando condições de desgaste ao poder, que enfraquecem o poder da ditadura? Depois, há a guerra colonial, que serve de instrumento para abrir os olhos a muitos militares do que era a situação em Portugal. Eu por exemplo, que não me interessava pela política, abri os olhos para a situação que se vivia em Portugal em plena Guerra Colonial, ao perceber que quem tinha razão era quem estava a lutar contra mim, a lutar pela sua independência e pela sua liberdade, isso levou-me a perceber o tipo de regime de repressão que nós tínhamos em Portugal. E portanto, tudo isso ajuda a criar condições para que se fizesse o 25 de Abril. A seguir, a população abraçou de facto a liberdade e a democracia, abraçou-a e de que maneira! E viveu-a intensamente, com erros, como eu já disse, mas intensamente. Uma das coisas de que eu tenho alguma saudade é de, nesses tempos eu ter visto as pessoas lutarem por aquilo em que acreditavam, lutarem pelos seus ideais, pelos seus interesses, não esperarem que venha o vizinho do lado e tire a castanha do lume para ele não queimar as mãos. Portanto, pessoas lutaram, participaram.

 Tinha havido " eleições" em outubro de 1973. Os cadernos eleitorais para essas " eleições " tinham 1500 mil eleitores. Em 25 de abril de 1975, quando serão as primeiras eleições para a Assembleia Constituinte, eleições livres em Portugal, os cadernos eleitorais ultrapassaram os 5 milhões e meio de eleitores. A população era a mesma, mas vocês vejam quem tinha direito a votar e que não tinha direito a votar antes do 25 de Abril e depois do 25 de Abril. Participaram nestas primeiras eleições 92% dos inscritos nos cadernos eleitorais. Portanto, nunca houve eleições tão fortes em Portugal, logo em 1976, depois da aprovação da Constituição a eleições para a Assembleia da República, para o Presidente da República, para as autarquias. E depois há também eleições para as regiões autónomas. Portanto, a democracia começou a funcionar, com seus defeitos, eu acho que a democracia está de tal maneira, e os valores de 25 de Abril estão de tal maneira interiorizados na população, eu sinto-o, ainda hoje, hoje já consigo passar mais ou menos despercebido em muitos sítios, a seguir ao 25 de Abril não conseguia porque estava sempre a aparecer na televisão como porta-voz de tudo o que era MFA, mas sinto que as pessoas assumiram o 25 de Abril, assumiram a liberdade e assumiram a democracia.

 Eu acho que nós tivemos um período em que estivemos à beira do abismo, porque ao poder chegaram pessoas que odeiam 25 de Abril, tudo o que era 25 de Abril era para acabar, era para destruir, queria-se ir além da Troika, etc. etc., mas eu acho que o sistema democrático acabou por ter a capacidade de encontrar uma solução democrática que nos fez parar, evitou que déssemos o passo final para cair no abismo, e de há 5 anos para esta parte estejamos a recuperar. Enfim, com muitas deficiências ainda, com muita coisa para fazer, mas estamos a recuperar, principalmente num campo onde se avançou bastante a seguir ao 25 de Abril e depois houve muito retrocesso, que é no campo da Justiça social. O campo da justiça social, houve um momento em que voltou a alargar essa Justiça social. Estamos a recuperar alguma coisa, precisa de recuperar muito mais, e por isso mesmo eu penso que o 25 de Abril está no coração da maioria dos portugueses, e é por isso, em grande medida, que de qualquer maneira não podemos descansar porque nesta coisa da liberdade há sempre alguém que quer tirar a liberdade aos outros para ficar com ela só para si, mas é claramente por causa do 25 de Abril que a extrema-direita em Portugal já residual em comparação com muitos países da Europa. Portanto, já chegaram ao parlamento, espero que esta crise viral em que estamos envolvidos nos faça perceber que a fraternidade, a solidariedade, a liberdade, a justiça social são essenciais construir uma sociedade mais feliz.

E - Como tinha dito, em 25 de novembro de 1975, havia a possibilidade de ocorrer uma Comuna na cidade de Lisboa e para impedir que esta tensão se tornasse em ação, o presidente da República declarou o estado de sítio. Quais foram as garantias referidas na constituição que foram suprimidas, e acredita que esta forma de atuar é necessária nalguns momentos?

Vasco Lourenço: Vamos lá ver, na altura há uma ação militar de indisciplina contra as bases, contra o Poder, e portanto foi o Conselho de Revolução, juntamente com o Presidente da República, que também é o presidente da revolução, que determinou o estado de sítio na área da Grande Lisboa, na área da região Militar de Lisboa. O que é que foi suprimido? Essencialmente, o direito de circulação, e fundamentalmente foi decretado o recolher obrigatório. A partir das 18 horas, as pessoas tinham que estar nas suas casas, e só podiam circular se tivessem salvo-condutos para circular. Eu posso-lhe dizer, porque eu fui, aliás a causa próxima da eclosão do 25 de novembro, é a minha nomeação para Comandante da região Militar de Lisboa. Eu funcionei já, nessa situação, como Comandante da região Militar de Lisboa, a cadeia de Comando era o Presidente da República, eu e tinha o Ramalho Eanes como meu adjunto, e ainda hoje, de vez em quando me aparecem algumas pessoas a dizer "Ainda lá tenho o salvo-conduto assinado por si para me autorizar a deslocar na altura em que esteve decretado o estado de sítio na região Militar de Lisboa". Portanto porque as pessoas pediam no quartel general e depois eu funcionei sempre, em plena presidência da república, durante esses dias, e era lá que me levavam os salvo-condutos para eu assinar.

 Portanto foi essencialmente essa, na altura, a liberdade que foi cortada, a de circulação. é evidente que, em determinadas situações, não se chegou ao estado de sítio, decretou-se o estado de emergência, Depois do estado de emergência ainda há, mais ligeiro, o estado de calamidade. Portanto, há algumas liberdades que são cortadas, as situações são absolutamente diferentes, mas é evidente que o poder tem que ter a capacidade de, perante as situações complexas, poder tomar medidas excecionais. é evidente que, como se sabe, isso acontece em democracia, porque em ditadura não é preciso decretar, a constituição não diz isso, o ditador tem o poder absoluto de decretar o estado de sítio, ou decretar seja o que for, não é? Portanto, democracia, o que eu espero e faço votos, é para que em Portugal, como aparentemente eu estou convicto que vai acontecer, não haja aproveitamento do poder para o prolongamento de situações de cortar a liberdade aos cidadãos, como infelizmente nós estamos a ver noutros pontos do mundo, nomeadamente até na própria União Europeia, não é?

E - Como reflexão final, queremos perguntar-lhe qual é a origem da sua coragem e como é que podemos continuar a lutar por uma democracia cada vez melhor?

Vasco Lourenço: Origem da minha coragem não lhe sei dizer, não é? Sou eu próprio. Eu em plena guerra coordenei a escrita de um livro, que deve ser o único livro que existe com memórias da guerra escrito em plena guerra. Nós escrevemos lá em plena guerra. Normalmente os livros, pelo menos eu não conheço nenhum que tenha sido escrito em plena guerra, os livros são escritos depois de viver a guerra, só depois de regressar é que o indivíduo escreve a sua vivência, as suas memórias, etc. E eu resolvi que a minha companhia escrevesse um livro, e pedi aos vários militares da minha companhia para escreverem em pequenos episódios que tivessem vivido em plena guerra, para depois em conjunto fazermos no livro a dizer o que é que tínhamos sentido e vivido na guerra. E um dos artigos que eu escrevi, tenho lá vários, um dos artigos é "O Medo". Eu desde criança, para mim, como é que eu via o medo. Era aquilo que eu sentia quando miúdo, passava junto ao cemitério da minha aldeia, à noite. O cemitério era assim, fora da aldeia, e havia um medo terrível de passar lá junto ao cemitério. Para mim isso é que era o medo, porque eu não sentia o que era o medo, nunca tinha sentido. E uma das interrogações que fazia a mim próprio quando fui para a guerra era " Como é que eu, face uma situação assim, sei que vou sentir realmente o medo, como é que eu vou reagir? Serei capaz de reagir bem? Ou não?" E eu descrevo isso nesse artigo que digo que o medo, todas as pessoas o sentem. Não há pessoa que possa dizer que não tem medo, toda a gente o sente, é intrínseco do ser humano. O fundamental é ser capaz, perante o medo, de o encarar e de o vencer, ser capaz de atuar vencendo o medo. E eu quando regressei da Guiné, uma das grandes satisfações que trazia comigo quando regressei da guerra, era que eu tinha efetivamente tido duas ou três situações muito complexas, de guerra, em que senti o medo, mas tinha-lhe conseguido reagir de forma correta, vencendo-o.

Portanto, coragem, é assim: o Péricles afirmou que, sendo o objetivo principal que eu tenho, que vocês têm, que todo ser humano tem na vida, é atingir a felicidade, é ser feliz. Esse é o objetivo principal que nós todos temos, de uma maneira ou de outra, o objetivo é sermos felizes. E o Péricles dizia que, sendo esse o objetivo final do ser humano, para se ser feliz tem que se ter Liberdade, só se consegue ser feliz em liberdade. Se não houver Liberdade, felicidade está de certeza mascarada aparentemente de estarmos felizes, mas não há felicidade sem Liberdade. Mas depois acrescentava: "Mas para atingir a liberdade, é preciso coragem." Portanto, é preciso coragem para atingir a liberdade, e para a manter, para lutar por ela. é isso que eu tento, agora olho para trás e sinto-me realizado como ser humano em muitas coisas, e uma delas, de facto, é essa de que, face às situações em que o medo aparece, eu tenho conseguido ultrapassá-las sempre, com a coragem que me vem de aonde? Não lhe sei dizer. Agora, lutarmos para o 25 de Abril, que para mim é lutar por uma sociedade melhor, mais feliz, mais justa, livre, que face aos sistemas conhecidos, tem de ser democrática, porque eu costumo dizer "Eu prefiro uma democracia com muitos defeitos a uma ditadura sem defeitos nenhuns", entre aspas, porque não há ditadura sem defeitos. E isso para mim, a paz, a solidariedade, a fraternidade, a defesa do ambiente, que é uma coisa que no 25 de Abril não estava na ordem do dia, e entretanto vocês, gerações mais novas, e ainda bem, estão de olhos abertos para esta questão fundamental, para podermos ter um mundo mais feliz.

O fundamental é as pessoas convencerem-se de uma coisa: têm que lutar por aquilo em que acreditam. Não podem assobiar para o lado, não podem estar à espera que o vizinho do lado vá e tire a Castanha do lume, e se for preciso até lhe tira a casca, deixa-a a arrefecer um bocadinho, e fica morninha para eu poder comer. Não, as pessoas têm de ter ação cívica, é evidente que a ação política é importante, mas a ação cívica é principal, depois pode assumir uma ação mais participativa conforme as políticas, mas a ação cívica é fundamental. E se as pessoas participarem, se partirem deste princípio, que esta crise viral também nos está a mostrar, que o coletivo é essencial. Que é uma das coisas que eu tenho alguma saudade também de ver nas sociedades de há uns anos, e vocês infelizmente já foram criados um bocado nesse sistema do individualismo, de se defender o individualismo acima do coletivismo. Coletivismo entre aspas, eu quando falo em coletivismo não falo em organizações políticas coletivistas. O individualismo é terrível, eu costumo dar-vos o exemplo, vocês são alunos, eu costumo dar um exemplo quando falo com jovens, que é: Nos bons tempos do liceu, nós íamos para provas escritas e fazíamos mil tropelias para passarmos a resposta correta ao colega que estava ao lado e não sabia fazer. Eu a partir de uma certa altura, habituei-me a ver que um indivíduo tem um parceiro ao lado e se for preciso põe o braço para esconder o que está a escrever, para que o parceiro não veja a resposta, porque tem medo que ele tenha melhor classificação do que ele. Isto é a luta individualista das sociedades, que de facto, eu não compreendo. Espero que de facto a vossa geração consiga ultrapassar tudo isto, mas tenha, e felizmente temos vindo a assistir à participação dos jovens em muitas lutas cívicas em defesa da humanidade, e eu espero que isso continue.

Entrevista realizada pelo Zoom e transcrita.

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